“E se a Tempestade fosse branca?” O argumento que não faz sentido
Recentemente tivemos o lançamento do primeiro teaser da versão live-action de A Pequena Sereia, e para a surpresa de ninguém, houve grande polêmica. Um grande número de pessoas racistas se revoltou com o fato da atriz Halle Bailey ser a protagonista. Isso porque a versão da sereia Ariel no desenho é originalmente caucasiana, enquanto a atriz escolhida para o live-action é negra. Essa parte do público utilizou de uma série de argumentos para tentar apoiar a tese de que essa escolha criativa da Disney é ruim. Dentre esses argumentos, está a falsa simetria que dá título a esse artigo. Nós estamos aqui justamente para apontar o quanto citar a Tempestade (ou qualquer outro personagem) como exemplo é uma argumentação descabida, visto que essa é uma falsa equivalência.
⊗ Qual é a reclamação?
O caso da Ariel não é único. Para quem não sabe o que está acontecendo, a “indignação” de certas pessoas se dá porque algumas produções atuais estão optando por colocar personagens não caucasianos em suas tramas. Isso inclui adaptações de personagens originalmente brancos, que acabam sendo modificados para personagens não-brancos, com o objetivo de aumentar a diversidade nos elencos.
Segundo eles, isso não deveria acontecer, visto que os autores conceberam os personagens como brancos, então eles deveriam permanecer dessa forma. Ainda que todos os outros aspectos sejam fiéis, isso não importa para essas pessoas, pois alterar a etnia de alguma forma estraga esses personagens. Ou seja, ignora-se todos os outros aspectos de um personagem, pois a cor da pele é o mais importante.
Assim, para tentar mostrar que as produções não deveriam fazer isso, criam uma argumentação falha envolvendo a mutante Tempestade. Afirma-se que não se deve alterar nenhuma etnia, afinal, “transformar a Ariel em uma sereia negra é tão errado quanto transformar a Tempestade em uma mutante branca”.
⊗ Por que os personagens brancos são brancos no cinema?
Eventualmente nós traremos a nossa argumentação falando de Tempestade e do porquê o argumento citado não faz sentido. Mas antes falemos de história. Você que está lendo esse texto já se perguntou por que a maioria esmagadora dos personagens são brancos? Provavelmente não. Isso acontece porque ser branco é considerado como a regra, o normal. Nas listas de escalações de filmes é preciso destacar quando um personagem é asiático, indígena ou negro. No entanto, quando ele é branco, as chamadas simplesmente destacam outras características que compõe o personagem e não a cor da sua pele.
Vale apontar que isso é uma herança do racismo estrutural, que estabeleceu o caucasiano como a regra e todo o resto como exceção. Durante muitos anos, os estúdios se recusaram a produzir filmes protagonizados por pessoas pretas. Isso porque as leis segregacionistas barravam esses filmes dos cinemas. Dessa forma, gravar um filme que não exibiriam traria apenas prejuízo.
Durante a era do cinema mudo até existiam personagens pretos nos filmes, mas mesmo esses só existiam pela ótica do racismo. Eles eram interpretados por atores brancos utilizando maquiagem escura no rosto para simular o tom de pele negro, o chamado blackface.
Todas as princesas mais clássicas da Disney, assim como a maioria esmagadora dos personagens clássicos do cinema são brancos, correto? Mas só o são, porque a sociedade racista proibia que outras etnias tivessem a mesma chance. Assim como os proibiram de entrar nos ônibus, de frequentar os mesmos locais e proibiram suas músicas de tocarem nas rádios. O caso de Tempestade e de outros personagens negros é muito diferente, mas falaremos sobre isso um pouco mais abaixo.
⊗ Entendendo o Código dos Quadrinhos
Aqui teremos de voltar muito no tempo, nos anos 50, para falar do CCA, o Comic Code Authority ou “Código dos Quadrinhos”. Um orgão que era regido pela Associação Americana de Revistas em Quadrinhos, como uma forma de autocensurar o conteúdo dos quadrinhos estadunidenses. Essa autorregulamentação modificou o conteúdo das revistas, a escolha de cores, temas e palavras. Ele surgiu devido à influência do Dr. Fredric Wertham, um psiquiatra, pesquisador e escritor alemão, que se mudou para os Estados Unidos, onde se tornou professor. Ele protestava contra os efeitos supostamente nocivos de imagens violentas na mídia de massa e revistas em quadrinhos sobre o desenvolvimento das crianças. Qualquer semelhança com certo prefeito do Rio de Janeiro com relação à Bienal do Livro é mera coincidência, ok?
O principal objetivo do CCA era adequar os quadrinhos ao conteúdo que os pais da época acreditavam ser adequados para os seus filhos. Algo que na teoria não é ruim, mas quando temos uma sociedade como a norte-americana e a nossa da época e atualmente, a prática deixa a desejar. Isso marcou o início de uma série de eventos em que quadrinhos eram indiciados como comunistas e “indevidamente sexuais”. Dr. Fredric Wertham apontava em seu livro que quadrinhos davam às crianças comportamentos inadequados. Segundo ele, davam “ideias erradas sobre as leis da física”, “implementavam e reforçaram pensamentos homossexuais” e “faziam as meninas terem ‘ideias erradas’ sobre o lugar da mulher na sociedade”. O problema é que as bancas e os vendedores de quadrinhos passaram a se recusar a vender HQs que não tivessem o selo do CCA. Essa foi a razão pela qual os quadrinistas tiveram que se submeter.
Eventualmente, as imposições desse selo foram ficando mais brandas, mas abaixo você poderá entender o quanto ele foi prejudicial para personagens não-brancos.
⊗ O Controverso “Dia do Julgamento”
Judgment Day é uma história em quadrinhos dos anos 50. Ela é futurista e gira em torno de um astronauta, que viaja para um planeta onde os humanos haviam enviado robôs. O objetivo era que esses robôs laranjas e azuis se desenvolvessem e criassem uma sociedade estável. Chegado o dia do julgamento, o astronauta vai até o local para julgar o trabalho dos robôs. Ele percebe então que as máquinas realmente evoluíram, no entanto, os robôs laranjas passaram a segregar os robôs azuis. Os azuis viajavam no fundo dos ônibus e não podiam frequentar certos lugares. O astronauta então julga que os robôs ainda não se desenvolveram o suficiente e vai embora. Segundo o humano, a humanidade também já foi daquele jeito, mas evoluiu. Assim, quando a HQ termina, o astronauta tira o capacete e vemos que ele é um homem negro.
Em 1956, a história da Entertainment Comics, An Eye for an Eye, foi rejeitada pelo código dos quadrinhos. William Gaines chefe da editora então resolveu relançar a história Judgment Day como uma história substituta. A história de Al Feldstein e do artista Joe Orlando é uma alegoria contra o preconceito racial, assim a revelação do astronauta negro era essencial. Contudo, o juiz do código, Charles Murphy, pediu uma alteração no último quadrinho, pois queria que o astronauta fosse branco. Gaines se revoltou, não apenas se negando a alterar o quadrinho, como também ameaçando Charles. Ele ameaçou informar à imprensa sobre a objeção de Murphy caso não dessem o selo de código para aquela edição. Assim a história ganhou o selo e realmente foi veiculada.
Apesar de Gaines vencer a batalha, a EC Comics perdeu a guerra. Essa afronta fez com que as restrições se tornassem ainda maiores. Sem publicações, a editora caiu em ruína financeira e foi forçada a interromper a produção.
⊗ Por que não criar personagens novos ao invés de mudar os brancos?
Essa é uma pergunta respondida em outro artigo do UX relacionado a uma possível introdução de um Professor X negro, mas ela também se encaixa para essa situação. É preciso lembrar, que como citamos, eventualmente as imposições do código dos quadrinhos foram ficando mais brandas. Ainda assim, com a história acima é fácil perceber o quanto ele foi prejudicial. A Marvel só abandonou o CCA oficialmente em 2001 e a DC Comics apenas em 2011.
Não podemos fingir que as mídias não escolhem os personagens mais populares para destacar. Falando do nosso nicho, os quadrinhos, dá para dizer que poucos são os heróis não-brancos que estão entre os favoritos do público. A culpa disso é um pouco de herança do CCA, mas também a negligência de roteiristas, por não cativarem os leitores, ao não darem destaque e não se aprofundarem nesses personagens.
O fato é que não é tão simples assim fazer o público comprar a ideia de um personagem novo. Ou seja, é muito difícil criar uma nova Tempestade, bem como é difícil criar um novo Ciclope. E se é difícil fazer isso com personagens criados há anos, imagine então criar novos personagens 80 anos depois da popularização dos super-heróis. Tempestade, Bishop, Jubileu e Psylocke possuem alta relevância e provavelmente serão muito bem explorados no MCU, mas não podemos ficar apenas neles ou nos poucos personagens de etnia diversa que temos por aí.
Não é a primeira vez que falamos sobre uma pesquisa de 2018 que aponta que, em certos momentos da história dos quadrinhos, para cada 100 personagens, apenas 5 deles são negros. Não apenas isso, também aponta que, segundo os registros da última década, um personagem negro novo demorava cerca de 14 meses para ser criado ou lançado. Uma disparidade, visto que, no mesmo período, um novo personagem não-negro surgia a cada 36 dias.
⊗ Agora sim, por que o “E se fosse a Tempestade ou o Pantera?” não faz sentido?
Geralmente, alterar a cor da pele de personagens não-brancos como Tempestade ou Miragem é sinônimo de fazê-los se tornarem outros personagens, com outras vivências. Isso porque mudar a etnia de personagens não-brancos normalmente significa uma alteração de toda a sua história. Sua essência seria modificada, visto que suas origens se baseiam em suas etnias, suas questões culturais ou na discriminação e no descaso que seus povos sofrem. Há alguns personagens não-brancos que não possuem essa conexão com suas origens, ou seja, personagens que caberiam uma alteração de etnia para branco. Contudo, quando levamos em conta a proporção de personagens não-brancos, para o número gigantesco de personagens caucasianos, não faz o menor sentido colocar mais um grão de areia dentro do deserto.
As origens de Tempestade remetem à morte de seus pais no Egito e sua vivência no continente africano, onde anos depois ela ficou conhecida como “Deusa do Tempo” no Quênia, quando buscou suas origens e passou a ajudar tribos locais fornecendo água. O mesmo vale, por exemplo, para Magneto, personagem branco, mas que é de origem judaica, com seu histórico baseado em uma Polônia dominada por nazistas. Ariel, por outro lado, é somente uma sereia branca, sem nenhuma explicação especial que coloque essa característica como essencial.
⊗ Sempre foi ao contrário!
Outra ponto contra essa argumentação que precisa ser citado: a história mostra que sempre foi “o contrário”. As mídias atuais estão alterando a etnia de personagens brancos em uma busca pelo capital sim, mas também para reparar um comportamento de anos. A história mostra que atores e atrizes brancos sempre tomaram o lugar de pessoas não-brancas no cinema. Abaixo citaremos apenas alguns de DEZENAS de casos.
Johnny Depp interpretou o indígena Tonto em “O Cavaleiro Solitário”. Angelina Jolie interpretou a afro-cubana Mariane Pearl em “O Preço da Coragem”. Russel Crowe interpretou Noé, que biblicamente é de algum lugar do Oriente Médio. A francesa Juliette Binoche interpretou a chilena Maria Segovia em “Os 33”. Christian Bale fez Moisés, também do Oriente Médio. Jake Gyllenhaal foi o “Príncipe da Pérsia”. Meryl Strip fez a chilena Clara del Valle Trueba em “A Casa dos Espíritos”. Marlon Brando interpretou o japonês Sakini em “A Casa de Chá do Luar de Agosto”. Liam Neeson interpretou o árabe Ra’s Al Ghul em “Batman Begins”. O elenco principal inteiro de O Último Mestre do Ar é composto por caucasianos, quando os personagens deveriam ser todos de diferentes partes da Ásia.
Na Marvel temos os casos de troca de etnia com Wanda, Anciã e o primeiro Mandarim. Isso sem falar dos filmes dos mutantes na Fox. Mancha Solar foi interpretado duas vezes por latinos caucasianos quando deveria ser negro. Cecilia Reyes é uma personagem afro-cubana, já a atriz Alice Braga é uma latina caucasiana.
⊗ Cristal exemplifica, SEMPRE FOI AO CONTRÁRIO
Durante o fim dos anos 70 e início dos anos 80, existiam poucos personagens negros, fossem homens ou mulheres. Se dependesse de Romita Jr, Cristal seria uma das heroínas que entraria para essa lista, ao lado de Tempestade e Misty Knight. Isso porque o próprio artista disse à revista Modern Masters que quando criou o visual da mutante Cristal, se inspirou na modelo, cantora e atriz jamaicana, Grace Jones. O desenho acima é assinado pelo próprio John Romita Jr.
Contudo, ficou decidido pelos superiores do quadrinista que o visual da mutante deveria ser baseado em outra atriz. Bo Derek, uma atriz loira de olhos azuis, que estava famosa pelo sucesso da comédia romântica “Mulher nota 10” foi a escolhida. Segundo John, ele sentiu que de certa forma a personagem foi “vendida”.
De repente, [o visual de inspiração] era o de Bo Derek em 1981 por causa do filme Mulher nota 10. E foi quando eu pensei ‘É isso. Eles se venderam por uma garota loira branca padrão’. Eu cresci em uma cidade onde as garotas brancas não eram 90% da população. Havia afro-americanas, havia hispânicas, havia asiáticas, era multicultural. Eu não via apenas garotas brancas, então queria que fosse Grace Jones. E eles disseram ‘Não, nós temos que mudar as coisas, porque Bo Derek está no filme “Mulher Nota 10” e ela é a mais bonita em Hollywood’, e assim foi.
John Romita Jr
E aparentemente, Cristal não é a única. Nas duas primeiras aparições do Doutor Estranho na revista Strange Tales, onde fez sua estreia nos quadrinhos, o personagem foi desenhado com traços aparentemente asiáticos. Algo que mudou repentinamente nas edições seguintes. Embora nesse caso não haja uma confirmação concreta de embranquecimento, o assunto acabou virando um tópico de discussão até mesmo entre quadrinistas renomados da própria Marvel.
⊗ É preciso aceitar o progresso
Com esse artigo acreditamos que cobrimos a maioria das argumentações que se opõem a esse tipo de alteração de etnia. Ainda assim, sabemos que para algumas pessoas, não há argumentação do mundo que as faça refletir sobre tais questões. Para esse caso, não temos muito mais a dizer que não seja: não há nada que vocês possam fazer.
Nos quadrinhos dos X-Men, a única forma que os humanos comuns conseguem impedir a evolução é através do extermínio e do fascismo. Isso porque eles deixam claro que o progresso é inevitável. O mesmo vale para nossas vidas. As pessoas estão buscando igualdade e não há nada que se possa fazer para voltar atrás. Regredir não é uma opção, o mundo mudou e é necessário acompanhá-lo para não ficar para trás.
Ou seja, os X-Men chegarão no MCU, a etnia de alguns personagens será mudada muito provavelmente, quer os “fãs” mais reclamões queiram ou não. Assim, se é algo que não dá para mudar, basta aceitar para não surtar. Caso não queira aproveitar as novas versões, contente-se com a versão que você já conhece, as adaptações novas não apagam o material que você cresceu acompanhando. X-Men é sobre inclusão, luta contra o preconceito e diversidade há 60 anos, nenhuma reclamação mudará isso.
Chegamos ao fim desse texto, afinal, qual sua opinião sobre o assunto?
Fontes: Censorshipfiles, cbldf, comicsalliance e thecomicbooks